NOSSA POESIA
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Compensação
O pensamento vestido de imaginados
Surge como um gânglio enfartado
E movimenta o cérebro cansado
Pelas distância sem rumo.
No caminho pedras e abismos
Se agarram ao nosso corpo frágil
E nos levam para a paisagem eterna
Num céu onde não há fim.
O mundo é um grande olho que espia tudo
E ensina um sofrimento mudo.
A luz pode ser esperança ou desespero
No olhar do transeunte que jamais veremos.
Sabemos que todos seguem o mesmo rumo
Nos jardins plantados de ciprestes.
Adalgisa Nery in Erosão
TAL VEZ, O QUE BASTE SABER*
I
Não que eu saiba tanto assim,
ou que menos me importe saber:
Há quantos, exatos incríveis anos,
não tomo um copo de cólera?
II
Não que me caiba aventar aqui,
quão mal me comporte ou sobreviva ali.
Ou arguir: Qual a veríssima idade
das algas, estrelas, pedras - da Luz?
Vez que tantos diferem de mim,
em tanta alegria ou tão pouca sorte,
qual a estival infame verdade do Tempo?
III
Sei, talvez suficiente, da noite, das luas,
dos rios e vaidades; do distraído
conviver com a morte – severa amante,
pão nosso primo de cada dia.
Conheço suas mais íntimas, venais,
profundas entranhas; becos, vielas e ruas
E elas, todas, muito mais sabem de mim!
IV
Sei, da madrugada, o estuário das manhas
- malditas e surdas; a densa voz de cada cidade:
A farsa inteira – crua, da servil tempestade
com que profana e abafa a viva manhã!
V
Do dia, mares, amor e sol, já soube
- e quis - mais.
Hoje, bem pouco sei. Mas o que sei me basta.
É este parco, velho, provável falso saber
que alimenta meu viver.
(Amanhã será outra noite!)
*Jairo De Britto, em
"Dunas de Marfim"
Chuva Interior
Quando saia de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.
Mario Chamie
(1933-2011)
Mário Chamie *(Cajobi, 1 de abril de 1933 - São Paulo, 3 de julho de 2011) foi um poeta e crítico brasileiro. Era formado em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi secretário municipal de Cultura de São Paulo e criou a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo.
Com seu livro Lavra Lavra, de 1962, instaurou o "poema-práxis". Mário Chamie é um nome muito importante na história das vanguardas surgidas no final da década de 1950, como dissidente do concretismo e fundador da "poesia-práxis". Tem mais de 140 obras publicadas e traduzidas em 57 idiomas. Gilberto Freyre escreveu sobre Chamie: "A criatividade se apresenta tão dele e tão não somente dele que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas".
Foi professor convidado a dar aulas e palestras em diversas universidades pelo mundo, como Harvard, onde deu aulas para o astro da música Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, de quem guarda até hoje uma coleção de cartas que este lhe enviara. Chamie dava aulas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, e era locutor do programa 50 por 1, exibido pela Rede Record e apresentado por Álvaro Garnero.
Foi casado por muitos anos com a falecida Emilie Chamie, famosa por seus trabalhos gráficos de divulgação de peças publicitárias. Participou do Projeto da Academia Paulista de Letras (da qual foi membro) "Escritor na Escola", ministrando duas palestras sobre o ritmo da fala na poesia escrita, nos colégios EE. Prof. Narbal Fontes e EE. Dr. Octávio Mendes.
O poeta morreu em 3 de julho de 2011, no Hospital Oswaldo Cruz.
Manhã de Inverno
Coroada de névoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de sono e de preguiça,
Nos olhos da fantástica indolente.
Névoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capelas, lágrimas mais puras.
A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.
Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras úmidas da chuva;
Erma de flores, curva a planta o colo,
E o chão recebe o pranto da viúva.
Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas trêmulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua história escreve.
Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
As névoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o vale;
Já se vão descobrindo os horizontes.
Sobe de todo o pano; eis aparece
Da natureza o esplêndido cenário;
Tudo ali preparou co’os sábios olhos
A suprema ciência do empresário.
Canta a orquestra dos pássaros no mato
A sinfonia alpestre, — a voz serena
Acordo os ecos tímidos do vale;
E a divina comédia invade a cena.
Machado de Assis,
in 'Falenas'
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